Cultivar a atitude transdisciplinar e saber pensar desta forma
Aproveito para partilhar convosco a comunicação que apresentei no II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade
pode fazer aqui o Download
1. O conceito Transdisciplinaridade e as dificuldades de sua apreensão
Uma das recomendações presentes na Déclaration Mondiale e no Cadre d’Action Prioritaire saídas em 1998 da Conferência Mundial sobre o Ensino Superior (UNESCO, 1999), igualmente constantes no projecto “A evolução transdisciplinar na Educação” do CETRANS, é o da inserção da metodologia transdisciplinar no ensino e nos programas educativos.
Igualmente, a nível do ensino superior, há que se fazer pesquisa transdisciplinar e agregar a essa pesquisa, os estudantes que se mostrarem interessados. Será então necessário falar-lhes da Transdisciplinaridade. É aqui que reside a complexidade da metodologia a seguir para que se desfaça a dificuldade de sua apreensão e possa haver a emergência de um novo nível de lucidez.
Por outro lado, assiste-se a um lento evoluir da adopção das recomendações da UNESCO a este respeito e a vulgarização da questão é praticamente inexistente. A Transdisciplinaridade continua a ser pouco conhecida.
Há estudiosos que atribuem mais importância à Interdisciplinaridade como motor do conhecimento, relegando a Transdisciplinaridade para situações mais restritas no domínio da ecologia onde ela “é sustentada por evidentes fundamentos ético-políticos” (PAVIANI, 2004).
A palavra Transdisciplinaridade foi introduzida em 1970 por Jean Piaget num colóquio em Nice (PIAGET, 1970). Ali foi aceite a adição do “para além das disciplinas” à definição do conceito. Aliás cabe então enunciar o conceito segundo a formulação seguinte: “A transdisciplinaridade diz respeito ao que se encontra entre as disciplinas, através das disciplinas e para além de toda a disciplina” (NICOLESCU, 1996).
Este “para além de toda a disciplina” aliado ao que se chama a “zona de não resistência correspondente ao sagrado” (NICOLESCU, 2000), levando à ideia de transcendência, traz a certas mentes resistentes o “pé atrás” de que a transdisciplinaridade é coisa de esotéricos, de pessoas sem rigor e até mesmo a acusações de impostura científica.
O facto de em geral, à semelhança do que consta do preâmbulo da Carta da Transdisciplinaridade, se fazer a introdução do tema pela demonstração do absurdo da multiplicidade de disciplinas e da crescente complexidade do mundo actual, faz criar inconscientemente uma sensação de que a Transdisciplinaridade é contra a existência das disciplinas e que ela tem um poder simplificador. Isto pode alimentar a ideia de imprecisão e do “tudo vale” em matéria de pensamento transdisciplinar.
Para evitar o nascimento deste tipo de predisposição, adoptámos nos seminários sobre Transdisciplinaridade que conduzimos , uma abordagem introdutória onde a ênfase é posta na necessidade de um novo paradigma da produção de conhecimento.
É aqui que entramos em simultâneo com a noção de complexidade e com a questão da insatisfação que o sistema clássico de produção de conhecimento nos traz hoje em dia. Começa assim a consciencialização dos participantes nesses seminários de que algo vai mal no processo da compreensão do mundo que nos rodeia e do nosso mundo interior. Levanta-se então paulatinamente o véu do onde se quer chegar, sem introduzir de maneira contundente, considerações de ordem ético-política e deixando sempre patente a necessidade de rigor e da manutenção da qualidade. Isto coaduna-se com o chamado “modo 2” de produção de conhecimento (NOWOTNY, 2003).
Como a Transdisciplinaridade é uma das três características desse “modo 2”, é neste momento que ela é apresentada e desenvolvida nas suas premissas. Começa então a tomar forma o que se entende por pensamento transdisciplinar. Só depois deste entendimento, que a Carta da Transdisciplinaridade é distribuída e as considerações ético-políticas poderão direccionar a construção de uma atitude transdisciplinar.
2. Obstáculos ao desenvolvimento de uma atitude transdisciplinar
Sendo então o pensamento transdisciplinar condição necessária para uma atitude transdisciplinar, devemos pois nos debruçar sobre algumas questões que perturbam o desenvolvimento deste pensamento e a adopção dessa atitude.
O pensamento disciplinar é “disciplinado”. Isto significa que os graus de liberdade são restringidos ao ponto de se pensar no interior de balizas, geralmente rígidas. Uma dessas balizas é o que geralmente chamamos de convenções.
Estamos rodeados de convenções, desde a língua e suas regras gramaticais, até às questões geográficas e respectivas representações. Naturalmente não devemos rejeitar as convenções, mas devemos estar conscientes de que elas são imposições e que podemos transgredi-las, nem que seja para que possamos ter outra visão da realidade (novo nível de percepção). Para ilustrar esta questão podemos apresentar um planisfério invertido (em relação ao convencional) e acompanhar o choque visual por alguns sentidos, com uma frase do tipo: “Vamos até lá em baixo a Portugal, passar umas férias!”
As ideias pré-concebidas e os preconceitos são igualmente uma ameaça ao pensamento transdisciplinar e um sério obstáculo à atitude transdisciplinar. Impedem a visão das coisas por um outro ângulo e oferecem considerável resistência ao incremento dos graus de lucidez. Para sacudir as mentes dos frequentadores desses seminários, fazemos inserir momentos e situações de choque. Por exemplo, convidámos uma vez uma especialista em medicina Ayurveda e era interessante observar as expressões dos presentes ao ver produtos de higiene feitos com bosta de vaca e ao ouvir os benefícios e usos de tal ingrediente. Um outro exemplo é o da história de um maliano que em França defendeu a sua tese de doutoramento em antropologia, fazendo a clássica e metódica descrição de uma etnia, desde as medidas antropométricas até à maneira como têm relações sexuais e praticam actos religiosos, ou mesmo as particularidades culturais mais curiosas; a etnia em causa: “os Franceses” ….
Variantes das ideias pré-concebidas são as superstições, crenças e lendas. Aqui convém não bater de frente, dado o delicado da questão. Entretanto, deve-se alertar que o que muitas vezes nos parecem certezas podem não sê-lo. Assim a abordagem de algumas “verdades” do senso comum e sua desmontagem, torna-se num excelente exercício para fustigar o sentido crítico latente em cada um de nós. É já uma velha discussão o tema “senso comum vs ciência”, mas convém trazê-la à ribalta, pois se por um lado devemos estar atentos às tais inverdades, por outro lado não podemos descartar o senso comum e valorizar apenas o que achamos ser “científico”. O diálogo entre a experiência vivida (onde se inclui o senso comum) e a abstracção formal (onde se inclui a ciência) é o garante da construção da sabedoria, é um exercício transdisciplinar.
3. Os graus de Transdisciplinaridade e os graus de lucidez
A prática da atitude e do pensamento transdisciplinar conduzem a uma gradual ascensão da nossa capacidade de discernimento. Isto se processa pelo diálogo entre o objecto transdisciplinar e o sujeito transdisciplinar (NICOLESCU, 2000). A facilidade de comunicação entre diferentes níveis de realidade por um lado e entre diferentes níveis de percepção por outro, leva certamente a uma passagem por diferentes níveis de lucidez. Neste processo complexo, podem ser então caracterizadas diferentes situações do exercício da transdisciplinaridade, chamados de graus de Transdisciplinaridade (JUDGE, 1994).
Os cinco graus de Transdisciplinaridade preconizados por Judge são explicitados e explicados aos participantes dos citados seminários, construindo-se um diagrama onde o lado esquerdo ilustra uma ascensão rumo à “teoria do todo” (Transdisciplinaridade 1) e o lado direito a ascensão rumo à transcendência (Transdisciplinaridade 2). No eixo central do diagrama (onde reside a zona de influência das alas) encontram-se os restantes graus de Transdisciplinaridade, sendo o mais elevado, aquele que é o culminar entrosado de altos graus de abstracção formal e de experiência vivida. Enfim, um alto grau de sabedoria.
4. Compreender os níveis de realidade e “aceitar” o terceiro incluído
Chegados a este estado do desenvolvimento do seminário, os participantes têm demonstrado um desejo de progredir em ambas as alas patenteadas no diagrama de Judge e em poder integrar estas competências rumo ao ascender da lucidez e ao alcançar do último grau de Transdisciplinaridade.
Na explicitação do diagrama, fez-se ver que o simples aumento do nº de conhecimentos científicos só faz a progressão na horizontal, ou seja do centro para a esquerda no eixo da abstracção formal. Idem em sentido oposto para o eixo da experiência vivida. Então, como ascender em lucidez? Sabendo passar de nível de realidade (e de nível de percepção).
A apresentação da teoria do terceiro incluído é … “intragável” pois choca com a nossa mente cartesiana. A questão de outros níveis de realidade também nos parece estranha. Certamente que uma melhor compreensão dos níveis de realidade iria facilitar a aceitação do terceiro incluído.
É sabido que nós aceitamos aquilo que se “encaixa” nas nossas referências prévias e nas nossas convicções. Se os nossos sentidos “confirmarem” as novas informações, carimbámo-las como aceites com mais facilidade. Em suma, o que captamos pelos sentidos e as sensações e emoções que vivemos, tem um poder enorme no forjar das nossas convicções. A técnica a seguir é a de provocar a consciencialização de uma mudança de nível de percepção e acompanhar isso de raciocínios que levam, por analogia, a entender fenómeno semelhante nos casos de mudança de nível de realidade.
Após evocar a agastada frase da “realidade virtual”, que em última análise é uma espécie de truque de ilusionismo (fica-se na mente que há ou deve haver pelo menos duas realidades), apresentamos diversos exemplos de ilusões de óptica. Primeiro as de dupla interpretação (podemos controlar as regras no nosso consciente que permitem a mudança de percepção); depois as que nos enganam, as que deformam a nossa percepção. Começamos a perceber que há possibilidades de mudança de percepção (com o sem controlo consciente). Ora isto ainda não é mudança de nível de percepção, pois não há a emergência de novas regras; não “vemos” surgir uma mudança, como se tivéssemos saltado para outra dimensão. Isto, porém, é conseguido com a apresentação de estereogramas.
Os estereogramas levam-nos a que de repente haja um “clique” e passamos de um mundo de duas dimensões para um de três. Trata-se de uma mudança de nível de percepção, pois não se trata de passar do “A” ao “não A” perceptivo, como nos exemplos das ilusões de óptica, mas da passagem ao T, o terceiro incluído.
Esta consciencialização da existência de um outro nível (neste caso de percepção) leva à admissão com mais facilidade da existência de outros níveis de realidade. Por outro lado, como nem todos conseguem “ver” os objectos tridimensionais surgirem de repente dos estereogramas, e como isto se passa a momentos diferentes para cada um dos presentes, cria-se uma diferenciação na audiência em uns atingiram um outro mundo (pelas exclamações proferidas e pelas expressões havidas) e outros permanecem na mesma. Esta dicotomia cria a sensação de níveis de lucidez diferenciados, e dá confiança à possibilidade de ascensão, protagonizada pelo referido diagrama de Judge.
A noção dos níveis de realidade será então reforçada com considerações baseadas na coexistência de características que se evidenciam de maneira diferenciada. A evocação de certos casos (da física e da matemática) considerados paradoxos é feita em seguida. O fenómeno da Emergência é apresentado e correlacionado com a Complexidade (ZWIRN, 2005). O teorema de Goedel é mencionado.
Resta ainda o entrosamento das duas alas, o encontro do sujeito com o objecto transdisciplinar. É então reforçada a questão das metáforas e o da necessidade de uma prática de contextualização.
Assiste-se então a angústia de não se saber como optimizar e rentabilizar estas novas luzes. A situação complexa parece complicada. Uns têm a propensão para o lado transcendental e outros para a lógica formal. Após estas sessões, todos sentem a necessidade de dar mais atenção à outra parte. Porque nos parece haver pouco equilíbrio? Como fazer na prática para que haja ascensão? Todas estas questões carecem de uma incursão no mundo dos hemisférios cerebrais e de suas funções diferenciadas.
5. Pensamento lateral e mind-mapping, auxiliares do pensamento transdisciplinar
“Cada hemisfério do cérebro humano tem as suas próprias sensações, percepções, pensamentos e ideias, a totalidade dos quais se encontra desligada das experiências correspondentes do hemisfério oposto…Em muitos aspectos, cada hemisfério desconectado parece uma mente própria” Roger Sperry, Prémio Nobel da Medicina em 1981
Apresenta-se então a teoria desenvolvida por Roger Sperry e por outros, sobre a propensão de cada um dos nossos hemisférios cerebrais a lidar com certos aspectos da nossa actividade mental e cerebral. (CARTER e RUSSEL, 2002). Do sequencial ao holístico, da análise lógica à sensualidade, da inteligência verbal à inteligência prática, do cálculo matemático à apreensão de padrões, enfim, a especialização de cada um dos hemisférios vai se conjugando com os lados esquerdo e direito do diagrama de Judge, com a masculinidade e a feminilidade do nosso mundo (NICOLESCU, 2000) e com o “Yin e o Yang” do Confucionismo.A demonstração dessa diferenciação é feita através de um exercício onde se pede para proferir em voz alta e rapidamente, os nomes das cores das palavras inscritas num quadro. Só que as palavras são nomes de cores mas estão em cores diferentes das que o nome indica.
Em seguida, potenciando estas capacidades cerebrais, introduz-se o chamado “pensamento radial” (BUZAN e BUZAN, 1994) consubstanciado pelo Mind Map™ dos mesmos autores. Este método, reúne, à volta de uma ideia central e a diferentes níveis, as palavras-chaves (com seus aspectos gráficos - cores, formas e tamanhos) designando ideias, sentimentos, acções, objectos, etc. A utilização de técnicas gráficas, desenhos e figuras, cores vivas e tamanhos, associadas a ideias e a factos apresentados de forma resumida (palavras-chave) é um exercício fértil de ambos os hemisférios. A disposição radial permite a colocação imediata e harmoniosa de uma nova ideia emergente no seu lugar certo e no nível adequado. Há visualização global do mapa (permitindo a contextualização), exercício do poder de síntese, associação a aspectos emotivos das ideias, preenchimento de vazios (ramos propositadamente deixados vazios para incitar o nosso cérebro a preenchê-los – o nosso cérebro tem horror ao vazio). Este exercício faz desenvolver não só as capacidades dos dois hemisférios, mas a conjugação dessas capacidades. Isto cria automatismos que facilitam o fluxo de informação entre as esferas do sujeito e do objecto, potenciando paulatinamente a ascensão dos graus de Transdisciplinaridade, o desenvolvimento do pensamento transdisciplinar e a consolidação da atitude transdisciplinar.
Recomenda-se também para além da adopção dos mapas mentais, fazer exercícios para conseguir um melhor equilíbrio cerebral dos dois hemisférios (livros e testes psicométricos sobre estas questões são indicados)
6. Considerações finais
Acabamos de apresentar a filosofia que sustenta a metodologia utilizada em seminários conduzidos e coordenados pelo autor, destinados a despertar em potenciais pesquisadores e investigadores, o gosto e o interesse pela Transdisciplinaridade. Pensamos que uma próxima etapa seria a de aperfeiçoar o processo e adaptá-lo a um público mais vasto e menos instruído (1º ano do ensino superior).
Referências bibliográficas
BUZAN, Tony e BUZAN, Barry. The Mind Map Book – How to use radiant thinking to maximize your brain’s untapped potential. New York - USA: Dutton, Penguin books Inc.,1994.
CARTER, Philip e RUSSEL, Ken. Como aperfeiçoar o equilíbrio cerebral. Lisboa: Editorial Estampa, Lda. 2002.
JUDGE, Antony J. N. “Transdisciplinarity-3 as the mergence of patterned experience”. In: –1º Colóquio Mundial sobre a Transdisciplinaridade, 1994, Arrábida, Portugal. - Transdisciplinarity / Transdisciplinarité. Lisboa: Hugin Editores, Lda, 1999, pp. 117-14.
NICOLESCU, Basarab. Educação e Transdisciplinaridade / NICOLESCU Basarab et al, Brasília: UNESCO, 2000.
NICOLESCU, Basarab. La transdisciplinarité, manifeste, Paris: Éditions du Rocher, Collection “Transdisciplinarité”, 1996.
NOWOTNY, Helga. The Potential of Transdisciplinarity, 2003. Disponível em: . Acesso em 20 de Julho 2005.
PAVIANI, Jayme. “Disciplinaridade e Interdisciplinaridade”. Interdisciplinaridade, Humanismo, Universidade / PIMENTA Carlos et al. Porto: Campo de Letras – Editores, S.A., 2004, pp. 15 a 57.
PIAGET, Jean. “L’épistémologie des relations interdisciplinaires”. In: L’interdisciplinarité – Problèmes d’enseignement et de recherche dans les universités, Nice, 1970. Actas do colóquio, OCDE, Paris, 1972.
UNESCO. Déclaration mondiale sur l’enseignement supérieur pour le XXIe siècle et Cadre d’action prioritaire pour le changement et le développement de l’enseignement supérieur. In : Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, 1998, Paris.
ZWIRN, Hervé. “Qu’est-ce que l’émergence?”. Sciences et Avenir/L’énigme de l’émergence, Paris, hors-série, nº 143, pp. 16-20, Julho/Agosto 2005
Uma das recomendações presentes na Déclaration Mondiale e no Cadre d’Action Prioritaire saídas em 1998 da Conferência Mundial sobre o Ensino Superior (UNESCO, 1999), igualmente constantes no projecto “A evolução transdisciplinar na Educação” do CETRANS, é o da inserção da metodologia transdisciplinar no ensino e nos programas educativos.
Igualmente, a nível do ensino superior, há que se fazer pesquisa transdisciplinar e agregar a essa pesquisa, os estudantes que se mostrarem interessados. Será então necessário falar-lhes da Transdisciplinaridade. É aqui que reside a complexidade da metodologia a seguir para que se desfaça a dificuldade de sua apreensão e possa haver a emergência de um novo nível de lucidez.
Por outro lado, assiste-se a um lento evoluir da adopção das recomendações da UNESCO a este respeito e a vulgarização da questão é praticamente inexistente. A Transdisciplinaridade continua a ser pouco conhecida.
Há estudiosos que atribuem mais importância à Interdisciplinaridade como motor do conhecimento, relegando a Transdisciplinaridade para situações mais restritas no domínio da ecologia onde ela “é sustentada por evidentes fundamentos ético-políticos” (PAVIANI, 2004).
A palavra Transdisciplinaridade foi introduzida em 1970 por Jean Piaget num colóquio em Nice (PIAGET, 1970). Ali foi aceite a adição do “para além das disciplinas” à definição do conceito. Aliás cabe então enunciar o conceito segundo a formulação seguinte: “A transdisciplinaridade diz respeito ao que se encontra entre as disciplinas, através das disciplinas e para além de toda a disciplina” (NICOLESCU, 1996).
Este “para além de toda a disciplina” aliado ao que se chama a “zona de não resistência correspondente ao sagrado” (NICOLESCU, 2000), levando à ideia de transcendência, traz a certas mentes resistentes o “pé atrás” de que a transdisciplinaridade é coisa de esotéricos, de pessoas sem rigor e até mesmo a acusações de impostura científica.
O facto de em geral, à semelhança do que consta do preâmbulo da Carta da Transdisciplinaridade, se fazer a introdução do tema pela demonstração do absurdo da multiplicidade de disciplinas e da crescente complexidade do mundo actual, faz criar inconscientemente uma sensação de que a Transdisciplinaridade é contra a existência das disciplinas e que ela tem um poder simplificador. Isto pode alimentar a ideia de imprecisão e do “tudo vale” em matéria de pensamento transdisciplinar.
Para evitar o nascimento deste tipo de predisposição, adoptámos nos seminários sobre Transdisciplinaridade que conduzimos , uma abordagem introdutória onde a ênfase é posta na necessidade de um novo paradigma da produção de conhecimento.
É aqui que entramos em simultâneo com a noção de complexidade e com a questão da insatisfação que o sistema clássico de produção de conhecimento nos traz hoje em dia. Começa assim a consciencialização dos participantes nesses seminários de que algo vai mal no processo da compreensão do mundo que nos rodeia e do nosso mundo interior. Levanta-se então paulatinamente o véu do onde se quer chegar, sem introduzir de maneira contundente, considerações de ordem ético-política e deixando sempre patente a necessidade de rigor e da manutenção da qualidade. Isto coaduna-se com o chamado “modo 2” de produção de conhecimento (NOWOTNY, 2003).
Como a Transdisciplinaridade é uma das três características desse “modo 2”, é neste momento que ela é apresentada e desenvolvida nas suas premissas. Começa então a tomar forma o que se entende por pensamento transdisciplinar. Só depois deste entendimento, que a Carta da Transdisciplinaridade é distribuída e as considerações ético-políticas poderão direccionar a construção de uma atitude transdisciplinar.
2. Obstáculos ao desenvolvimento de uma atitude transdisciplinar
Sendo então o pensamento transdisciplinar condição necessária para uma atitude transdisciplinar, devemos pois nos debruçar sobre algumas questões que perturbam o desenvolvimento deste pensamento e a adopção dessa atitude.
O pensamento disciplinar é “disciplinado”. Isto significa que os graus de liberdade são restringidos ao ponto de se pensar no interior de balizas, geralmente rígidas. Uma dessas balizas é o que geralmente chamamos de convenções.
Estamos rodeados de convenções, desde a língua e suas regras gramaticais, até às questões geográficas e respectivas representações. Naturalmente não devemos rejeitar as convenções, mas devemos estar conscientes de que elas são imposições e que podemos transgredi-las, nem que seja para que possamos ter outra visão da realidade (novo nível de percepção). Para ilustrar esta questão podemos apresentar um planisfério invertido (em relação ao convencional) e acompanhar o choque visual por alguns sentidos, com uma frase do tipo: “Vamos até lá em baixo a Portugal, passar umas férias!”
As ideias pré-concebidas e os preconceitos são igualmente uma ameaça ao pensamento transdisciplinar e um sério obstáculo à atitude transdisciplinar. Impedem a visão das coisas por um outro ângulo e oferecem considerável resistência ao incremento dos graus de lucidez. Para sacudir as mentes dos frequentadores desses seminários, fazemos inserir momentos e situações de choque. Por exemplo, convidámos uma vez uma especialista em medicina Ayurveda e era interessante observar as expressões dos presentes ao ver produtos de higiene feitos com bosta de vaca e ao ouvir os benefícios e usos de tal ingrediente. Um outro exemplo é o da história de um maliano que em França defendeu a sua tese de doutoramento em antropologia, fazendo a clássica e metódica descrição de uma etnia, desde as medidas antropométricas até à maneira como têm relações sexuais e praticam actos religiosos, ou mesmo as particularidades culturais mais curiosas; a etnia em causa: “os Franceses” ….
Variantes das ideias pré-concebidas são as superstições, crenças e lendas. Aqui convém não bater de frente, dado o delicado da questão. Entretanto, deve-se alertar que o que muitas vezes nos parecem certezas podem não sê-lo. Assim a abordagem de algumas “verdades” do senso comum e sua desmontagem, torna-se num excelente exercício para fustigar o sentido crítico latente em cada um de nós. É já uma velha discussão o tema “senso comum vs ciência”, mas convém trazê-la à ribalta, pois se por um lado devemos estar atentos às tais inverdades, por outro lado não podemos descartar o senso comum e valorizar apenas o que achamos ser “científico”. O diálogo entre a experiência vivida (onde se inclui o senso comum) e a abstracção formal (onde se inclui a ciência) é o garante da construção da sabedoria, é um exercício transdisciplinar.
3. Os graus de Transdisciplinaridade e os graus de lucidez
A prática da atitude e do pensamento transdisciplinar conduzem a uma gradual ascensão da nossa capacidade de discernimento. Isto se processa pelo diálogo entre o objecto transdisciplinar e o sujeito transdisciplinar (NICOLESCU, 2000). A facilidade de comunicação entre diferentes níveis de realidade por um lado e entre diferentes níveis de percepção por outro, leva certamente a uma passagem por diferentes níveis de lucidez. Neste processo complexo, podem ser então caracterizadas diferentes situações do exercício da transdisciplinaridade, chamados de graus de Transdisciplinaridade (JUDGE, 1994).
Os cinco graus de Transdisciplinaridade preconizados por Judge são explicitados e explicados aos participantes dos citados seminários, construindo-se um diagrama onde o lado esquerdo ilustra uma ascensão rumo à “teoria do todo” (Transdisciplinaridade 1) e o lado direito a ascensão rumo à transcendência (Transdisciplinaridade 2). No eixo central do diagrama (onde reside a zona de influência das alas) encontram-se os restantes graus de Transdisciplinaridade, sendo o mais elevado, aquele que é o culminar entrosado de altos graus de abstracção formal e de experiência vivida. Enfim, um alto grau de sabedoria.
4. Compreender os níveis de realidade e “aceitar” o terceiro incluído
Chegados a este estado do desenvolvimento do seminário, os participantes têm demonstrado um desejo de progredir em ambas as alas patenteadas no diagrama de Judge e em poder integrar estas competências rumo ao ascender da lucidez e ao alcançar do último grau de Transdisciplinaridade.
Na explicitação do diagrama, fez-se ver que o simples aumento do nº de conhecimentos científicos só faz a progressão na horizontal, ou seja do centro para a esquerda no eixo da abstracção formal. Idem em sentido oposto para o eixo da experiência vivida. Então, como ascender em lucidez? Sabendo passar de nível de realidade (e de nível de percepção).
A apresentação da teoria do terceiro incluído é … “intragável” pois choca com a nossa mente cartesiana. A questão de outros níveis de realidade também nos parece estranha. Certamente que uma melhor compreensão dos níveis de realidade iria facilitar a aceitação do terceiro incluído.
É sabido que nós aceitamos aquilo que se “encaixa” nas nossas referências prévias e nas nossas convicções. Se os nossos sentidos “confirmarem” as novas informações, carimbámo-las como aceites com mais facilidade. Em suma, o que captamos pelos sentidos e as sensações e emoções que vivemos, tem um poder enorme no forjar das nossas convicções. A técnica a seguir é a de provocar a consciencialização de uma mudança de nível de percepção e acompanhar isso de raciocínios que levam, por analogia, a entender fenómeno semelhante nos casos de mudança de nível de realidade.
Após evocar a agastada frase da “realidade virtual”, que em última análise é uma espécie de truque de ilusionismo (fica-se na mente que há ou deve haver pelo menos duas realidades), apresentamos diversos exemplos de ilusões de óptica. Primeiro as de dupla interpretação (podemos controlar as regras no nosso consciente que permitem a mudança de percepção); depois as que nos enganam, as que deformam a nossa percepção. Começamos a perceber que há possibilidades de mudança de percepção (com o sem controlo consciente). Ora isto ainda não é mudança de nível de percepção, pois não há a emergência de novas regras; não “vemos” surgir uma mudança, como se tivéssemos saltado para outra dimensão. Isto, porém, é conseguido com a apresentação de estereogramas.
Os estereogramas levam-nos a que de repente haja um “clique” e passamos de um mundo de duas dimensões para um de três. Trata-se de uma mudança de nível de percepção, pois não se trata de passar do “A” ao “não A” perceptivo, como nos exemplos das ilusões de óptica, mas da passagem ao T, o terceiro incluído.
Esta consciencialização da existência de um outro nível (neste caso de percepção) leva à admissão com mais facilidade da existência de outros níveis de realidade. Por outro lado, como nem todos conseguem “ver” os objectos tridimensionais surgirem de repente dos estereogramas, e como isto se passa a momentos diferentes para cada um dos presentes, cria-se uma diferenciação na audiência em uns atingiram um outro mundo (pelas exclamações proferidas e pelas expressões havidas) e outros permanecem na mesma. Esta dicotomia cria a sensação de níveis de lucidez diferenciados, e dá confiança à possibilidade de ascensão, protagonizada pelo referido diagrama de Judge.
A noção dos níveis de realidade será então reforçada com considerações baseadas na coexistência de características que se evidenciam de maneira diferenciada. A evocação de certos casos (da física e da matemática) considerados paradoxos é feita em seguida. O fenómeno da Emergência é apresentado e correlacionado com a Complexidade (ZWIRN, 2005). O teorema de Goedel é mencionado.
Resta ainda o entrosamento das duas alas, o encontro do sujeito com o objecto transdisciplinar. É então reforçada a questão das metáforas e o da necessidade de uma prática de contextualização.
Assiste-se então a angústia de não se saber como optimizar e rentabilizar estas novas luzes. A situação complexa parece complicada. Uns têm a propensão para o lado transcendental e outros para a lógica formal. Após estas sessões, todos sentem a necessidade de dar mais atenção à outra parte. Porque nos parece haver pouco equilíbrio? Como fazer na prática para que haja ascensão? Todas estas questões carecem de uma incursão no mundo dos hemisférios cerebrais e de suas funções diferenciadas.
5. Pensamento lateral e mind-mapping, auxiliares do pensamento transdisciplinar
“Cada hemisfério do cérebro humano tem as suas próprias sensações, percepções, pensamentos e ideias, a totalidade dos quais se encontra desligada das experiências correspondentes do hemisfério oposto…Em muitos aspectos, cada hemisfério desconectado parece uma mente própria” Roger Sperry, Prémio Nobel da Medicina em 1981
Apresenta-se então a teoria desenvolvida por Roger Sperry e por outros, sobre a propensão de cada um dos nossos hemisférios cerebrais a lidar com certos aspectos da nossa actividade mental e cerebral. (CARTER e RUSSEL, 2002). Do sequencial ao holístico, da análise lógica à sensualidade, da inteligência verbal à inteligência prática, do cálculo matemático à apreensão de padrões, enfim, a especialização de cada um dos hemisférios vai se conjugando com os lados esquerdo e direito do diagrama de Judge, com a masculinidade e a feminilidade do nosso mundo (NICOLESCU, 2000) e com o “Yin e o Yang” do Confucionismo.A demonstração dessa diferenciação é feita através de um exercício onde se pede para proferir em voz alta e rapidamente, os nomes das cores das palavras inscritas num quadro. Só que as palavras são nomes de cores mas estão em cores diferentes das que o nome indica.
Em seguida, potenciando estas capacidades cerebrais, introduz-se o chamado “pensamento radial” (BUZAN e BUZAN, 1994) consubstanciado pelo Mind Map™ dos mesmos autores. Este método, reúne, à volta de uma ideia central e a diferentes níveis, as palavras-chaves (com seus aspectos gráficos - cores, formas e tamanhos) designando ideias, sentimentos, acções, objectos, etc. A utilização de técnicas gráficas, desenhos e figuras, cores vivas e tamanhos, associadas a ideias e a factos apresentados de forma resumida (palavras-chave) é um exercício fértil de ambos os hemisférios. A disposição radial permite a colocação imediata e harmoniosa de uma nova ideia emergente no seu lugar certo e no nível adequado. Há visualização global do mapa (permitindo a contextualização), exercício do poder de síntese, associação a aspectos emotivos das ideias, preenchimento de vazios (ramos propositadamente deixados vazios para incitar o nosso cérebro a preenchê-los – o nosso cérebro tem horror ao vazio). Este exercício faz desenvolver não só as capacidades dos dois hemisférios, mas a conjugação dessas capacidades. Isto cria automatismos que facilitam o fluxo de informação entre as esferas do sujeito e do objecto, potenciando paulatinamente a ascensão dos graus de Transdisciplinaridade, o desenvolvimento do pensamento transdisciplinar e a consolidação da atitude transdisciplinar.
Recomenda-se também para além da adopção dos mapas mentais, fazer exercícios para conseguir um melhor equilíbrio cerebral dos dois hemisférios (livros e testes psicométricos sobre estas questões são indicados)
6. Considerações finais
Acabamos de apresentar a filosofia que sustenta a metodologia utilizada em seminários conduzidos e coordenados pelo autor, destinados a despertar em potenciais pesquisadores e investigadores, o gosto e o interesse pela Transdisciplinaridade. Pensamos que uma próxima etapa seria a de aperfeiçoar o processo e adaptá-lo a um público mais vasto e menos instruído (1º ano do ensino superior).
Referências bibliográficas
BUZAN, Tony e BUZAN, Barry. The Mind Map Book – How to use radiant thinking to maximize your brain’s untapped potential. New York - USA: Dutton, Penguin books Inc.,1994.
CARTER, Philip e RUSSEL, Ken. Como aperfeiçoar o equilíbrio cerebral. Lisboa: Editorial Estampa, Lda. 2002.
NICOLESCU, Basarab. Educação e Transdisciplinaridade / NICOLESCU Basarab et al, Brasília: UNESCO, 2000.
NICOLESCU, Basarab. La transdisciplinarité, manifeste, Paris: Éditions du Rocher, Collection “Transdisciplinarité”, 1996.
NOWOTNY, Helga. The Potential of Transdisciplinarity, 2003. Disponível em: . Acesso em 20 de Julho 2005.
PAVIANI, Jayme. “Disciplinaridade e Interdisciplinaridade”. Interdisciplinaridade, Humanismo, Universidade / PIMENTA Carlos et al. Porto: Campo de Letras – Editores, S.A., 2004, pp. 15 a 57.
PIAGET, Jean. “L’épistémologie des relations interdisciplinaires”. In: L’interdisciplinarité – Problèmes d’enseignement et de recherche dans les universités, Nice, 1970. Actas do colóquio, OCDE, Paris, 1972.
UNESCO. Déclaration mondiale sur l’enseignement supérieur pour le XXIe siècle et Cadre d’action prioritaire pour le changement et le développement de l’enseignement supérieur. In : Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, 1998, Paris.
ZWIRN, Hervé. “Qu’est-ce que l’émergence?”. Sciences et Avenir/L’énigme de l’émergence, Paris, hors-série, nº 143, pp. 16-20, Julho/Agosto 2005
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